Sobre ter raízes. O CAPS Neusa Santos Souza hoje.

Marina Bistriche.

Foi preciso tentar organizar o que dizer em um pequeno texto, diante do chamamento complexo dessa roda de conversa: “Como está a situação dos CAPS no município do Rio de Janeiro”.

Para dizer de hoje é impossível, para mim, não refazer uma trajetória mental retomando o início da pandemia até agora. A situação que nos encontramos hoje tem efeitos profundos desse período que parece não ter fim. Essa avalanche de pensamentos repousou numa imagem que veio colada numa frase cantada pelos Racionais na voz do gigante Mano Brown: “tenha fé, porque até do lixão nasce flor”. Com respeito àqueles ligados a alguma religião, a fé dessa frase não é, para mim, uma fé da crença religiosa, num certo misticismo em algo que não se comprova. Ao contrário, é a fé que tem a ver com acreditar que em meio ao lixo, no cenário mais adverso da disputa narrativa e política sorrateira que joga vidas na vala, existe a possibilidade de fazer nascer algo. Isso não tem a ver com uma ideia liberal de superação. Nessa imagem-frase, a flor, pra mim, só é flor porque tem raízes. E é sobre isso que quero falar.

Penso que foi preciso, mais do que nunca, resgatar nossas raízes, nossa história política e de luta antimanicomial, que fundamentam alguns pilares teóricos e práticos que nos impedem de sermos tragados por essa onda tão avassaladora quanto obscura.

Hoje, posso dizer que o CAPS Neusa Santos Souza, assim como tantos outros, está caindo aos pedaços. Longe de ser força de expressão, nossa estrutura física vai mal. Portas e janelas quebradas, muita gente para pouca cadeira, ar condicionado que mais pifa do que funciona e um telefone fixo que nunca voltou a existir desde que foi extinto. Foi preciso muita pressão para que pudéssemos ao menos ter um telefone celular institucional, depois de quase 2 anos fazendo atendimentos on-line usando nossas linhas telefônicas e internet particulares.

Eu fiz essa breve ilustração da estrutura física do CAPS, porque é preciso que a gente lembre sempre e a cada vez que essa é uma das infinitas formas de precarizar o trabalho, colocando o nosso corpo de trabalhador em jogo e fazendo pouco do sofrimento de tantos usuários que são acompanhados pelo serviço. Não é bonito colar mandalas em uma parede descascada.

Mas, retomando a flor que pode nascer em meio ao lixo, as raízes da Atenção Psicossocial precisaram ser retomadas com rigor e radicalidade.

Mais do que nunca, o CAPS Neusa foi um serviço que atendeu crises. Toda a equipe, sem exceção, se colocou disponível e a disposição para atendimentos de sujeitos em crise. Indicamos rigorosamente a vinda dos sujeitos em crise ao CAPS, fomos aos mais variados territórios, para atender nas casas, nas RTs, na rua e em outros serviços, recorrendo aos CAPS III de vários pontos da cidade. Me parece que, hoje, o efeito disso é um certo modo de se organizar em torno das situações de crise, de tal maneira que falamos dessas situações a cada reunião de turno e em todas as supervisões.

Hoje também, o CAPS conta com um supervisor e supervisões semanais. Essa é mais uma das raízes. Com a saída da nossa primeira supervisora, ficamos um tempo sem supervisão clínico-institucional, em plena pandemia. Dificuldades na gestão se impuseram na contratação do supervisor que foi escolhido pela equipe. Até que a equipe convidou o supervisor, independente da gestão. E diante do desejo da equipe e do próprio supervisor, tivemos supervisão sem que o supervisor recebesse salário por um certo tempo. Hoje, finalmente essa situação se regularizou em termos contratuais e institucionais. Essa situação não pode ser tomada como algo simples ou burocrático. Não existe CAPS sem supervisão. Aliás, existem muitos. Mas no CAPS Neusa essa raiz não foi podada.

Hoje, seguimos sem fazer as oficinas desde que elas foram suspensas. No entanto, em janeiro de 2021, retomamos a Assembleia, dispositivo fundamental do CAPS Neusa. Todos os cuidados com distanciamento social e máscaras são tomados quando fazemos a Assembleia na praça do bairro. E a sua retomada teve a ver também com a preservação de uma das raízes da Atenção Psicossocial e do SUS, a participação popular. E é nesse dispositivo que temos discutido, entre outros temas, o recomeço das oficinas. A partir de uma decisão coletiva, as oficinas irão ocorrer, todas, fora do CAPS. Neste momento, estamos trabalhando na busca por locais parceiros e também pressionando pela compra de materiais. Fazer oficinas precárias com materiais precários também não é bonito.

Então posso dizer que hoje, o CAPS Neusa vive condições precárias de trabalho, o que inclui diminuição dos salários de alguns trabalhadores com a mudança de OS e períodos longos de trabalhadores sem férias, também causados pelo mesmo motivo. Eu mesma estou há mais de 2 anos sem férias. A chegada de novos trabalhadores foi fundamental, no entanto boa parte da equipe está cansada, essa percepção é clara, muitos de nós adoecemos. Mas as nossas raízes não foram podadas.

Pra seguir fazendo algum trabalho possível hoje, no CAPS Neusa, como já nos lembrou o próprio Mano Brown, a gente precisou voltar para as bases.